Juliana Netto
10 de out. de 20248 min de leitura
Um baobá na savana.
Caso eu pudesse sintetizar em uma imagem o jeito que eu andava me sentindo, depois desse andaço de tanto diagnóstico, tratamentos,...
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Muitos já sabem, outros vão fatalmente saber, pois as mudanças de rotina e mesmo as fisicas, serão visÃveis em breve. Em março de 2019, a minha vida deu uma guinada de 180 graus. Eu passei da médica que prescrevia as quimioterapias, à  paciente que recebe o diagnóstico desafortunado de um câncer de mama, fica com a vida meio em suspenso pra dar conta de mil exames, biópsias, notÃcias mais ou menos agradáveis, e culmina passando mais de cinco horas numa poltrona de frente pra BaÃa de Guanabara e Pão de Açúcar (não posso negar que a vista ajuda muito), para receber o "coquetel" com pré medicações poderosas e um combo com três quimioterápicos porretas. Chupei gelo por quase uma hora, pra diminuir a chance de ter gosto metálico na boca e de ter mucosite. Gelei a cabeça com uma touca ligada a um sistema de refrigeração que mantém a temperatura do couro cabeludo em torno de 18 graus. A famÃlia, os amigos e até eu, ficamos na apreensão da tal fadiga oncológica pós quimioterapia, das náuseas, dos vômitos. Bom... Não tomei conhecimento disso. Todas as medidas pré e pós QT estão sendo muito eficazes, mas nem tudo são flores. Minha maior sofrência foi a quantidade de corticóide nesse corpo, que me fez reter lÃquidos e ficar com as pernas inchadas, além de me deixar ainda mais agitada do que o costumaz. Precisei adquirir hábitos que nunca tive: me cobrir de bloqueador solar dos pés à  cabeça e  usar chapéu pra pegar sol, mesmo que seja pra cuidar do jardim, além de nunca esquecer de passar repelente. Estou cuidando das plantas, cozinhando, pedalando (quanto mais atividade fÃsica melhor), correndo, ainda que pouco, e pretendo voltar à natação o mais breve possÃvel. Comida saudável, exercÃcio e, principalmente, muito amor e carinho que tenho recebido dos amigos e da famÃlia, dos amigos que são famÃlia. Sai daà essa força que, muitas vezes, nesses momentos animados que passamos juntos, me faz esquecer que acabei de começar uma batalha, que vai ser longa mas, acredito mesmo, bem sucedida. A gente tira muito aprendizado desses tropeços da vida, e eu estou curtindo cada coisa nova e boa que está vindo no carreto deste tsunami. Vou comemorar o fim dessa jornada completando um Ironman em Floripa, isto já está combinado com a Márcia Ferreira, minha treinadora e amiga querida. Enquanto isso, vou me reinventando, me redescobrindo, aprendendo, desenvolvendo a tolerância e dando uns ataques também, porque sem uma catarse de leve ninguém guenta, né? E eu tô fazendo um tratamento oncológico, não uma terapia de transformação radical desta minha personalidade que vocês bem conhecem. Â
Muitas coisas já aconteceram, eu vou contar algumas por aqui, aos poucos. Por favor não me peçam detalhes técnicos, prognósticos, lista de medicamentos e efeitos colaterais. O que quero compartilhar são experiências, sentimentos e sensações de uma fase muito particular, que eu realmente não esperava viver. Papo técnico fica para os meus médicos assistentes, okay?
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Era uma vez uma moça aquariana, com lua em Virgem, cartesiana, que achava que controlava tudo na vida. Ela tinha um armário organizado por cores, que eram ordenadas seguindo o cÃrculo cromático, e sempre colocava as notas de cruzeiros em ordem crescente, na mesma direção e com os homenageados virados para frente. Ela planejava tudo na vida, desde que tinha uns seis anos de idade. Aà ela se apaixonou por um cara de humanas, muito gente boa, mas enrolado que nem um novelo. Eles se casaram e tiveram um filho aquariano, que nasceu no carnaval que nem a mãe, e tinha um mapa astral com um céu tomado de Aquário. O menino amava cozinhar e revolucionou a vida da famÃlia, começando a vender seus pães aos doze anos de idade. Ela deixou de ter um armário organizado por cores, e dava graças a Deus quando encontrava uma roupa no mafuá compartilhado, em menos de cinco minutos. A moça cartesiana tinha muitos amigos e fazia parte de um bloco de carnaval. Ela foi triatleta, mas como tinha as juntas frouxas, acabou se tornando uma tiazona chubby. Também era infectologista, mas resolver dedicar a vida a estudar um câncer que acometia pacientes com HIV/AIDS. Ela andava bem feliz com a sua vida de infecto-oncologista, até que ela descobriu que tinha câncer de mama, e passou da pessoa que prescrevia as quimioterapias, à paciente cuja vida dependia dos quimioterápicos.
A moça cartesiana sou eu, e aqui vou contar algumas histórias dessa nova fase da minha vida. De médica a paciente, mas sem perder o bom humor. Hay que endurecerce, pero perder la ironia jamás.